Trovões
- Admin
- 25 de jun. de 2018
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O meu silêncio foi quebrado pelos trovões, como se eu fosse sugado e remetido a minha infância. O meu lazer que nunca foi como eu gostaria; de tudo que me lembro, é que sempre tinha que sensibilizar minha mãe para me deixar tomar banho de chuva com minha irmã. Porque podíamos andar, correr e até rolar pelo chão e depois tomar banho de novo durante meia hora.
O cheiro da terra molhada o vento que embalava as árvores em volta da nossa casa, os pássaros que disputavam um lugar em baixo da bica de coleta d'agua do telhado evitando assim que suas penas fossem molhadas pelas gotas que caiam das alturas do céu cor de chumbo.
No curral do lado de casa, nesta época do ano tinha vacas que se espremiam sob a proteção de uma pequena cobertura onde meu pai me levava bem cedo para vê-lo tirando leite e me servia um copo bem cheio com direito a espuma e morninho; uma delícia.
Ficava em pé na porteira pelo lado de fora, porque eu tinha medo que o touro corresse atrás de mim e não houvesse tempo de ser salvo pela baixa velocidade de fuga que eu tinha em relação o deslocamento daquele animal de meia tonelada.
O meu pai demonstrava um orgulho desfaçado e ostentava segurança suficiente pra me proteger, mas minha avó vivia me dizendo pra que eu ficasse longe daquele bicho grande, apenas meu pai não se importava com o seu jeito intimidatório e de vez enquanto fazia questão de mostrar para o touro quem mandava e com isso era respeitado pelo bicho.
Mas eu era tão pequeno e tão magro que tinha que lutar para não ser carregado pelo vento em dias típicos de chuvas com ventos fortes, relâmpagos e trovões, por isso, gostava de ir pra chuva com minha irmã que apesar de ser mais nova era forte como um touro. Metáforas a parte, mas ela se garantia e durante aqueles tempos sempre me protegeu, chegando às vezes assumir a culpa das coisas erradas que eu fazia e apanhava da minha mãe no meu lugar.
Seguíamos na chuva na maioria das vezes até a casa da prima do meu pai. A casa tinha um alpendre enorme com bancos de madeira e ganchos para pendurar redes, usadas para dormir nas noites que não choviam e faziam um calor insuportável.
Ela ficava observando os fenômenos da natureza, como que de certo modo tivesse a sabedoria para entender como a chuva e os trovões aconteciam de uma forma muito científica. Ela me encantava e me tratava de forma sempre muito carinhosa.
Minha mãe nos mandava a sua casa porque no final dos dias que não chovia, ou seja, a maioria, ela lia Graciliano, Bilac, Alencar e tantos outros enquanto a garotada permanecia imóvel quase sem respirar, ela tinha o poder de nos levar em uma viagem empolgante, possível apenas pela a criatividade destes magos da literatura.
Eu fui alfabetizado bem depois pela minha mãe, mas conseguia me encantar com a forma que ela discorria sobre os diversos temas. Com uma postura de sábios transmitia de maneira acadêmica o que era para nós, experiências que conquistavam nosso tempo ao ponto de esquecermos nossas brincadeiras de crianças da nossa idade.
No alpendre da casa dela tinha uma calha coletora de água e formava com a chuva uma pequena cachoeira e eu entrava embaixo daquele aguaceiro e chegava a pensar que aquela era a maior cachoeira do mundo e enfrentava sozinho, pois minha escolha não era compartilhada com minha irmã porque tinha medo, mais ria muito da minha desenvoltura e penso que ela ficava orgulhosa da minha coragem.
O legal que a prima do meu pai não se importava com o meu banho exagerado e ainda me elogiava pelo enfrentamento. Uma disposição conquistada à duras penas, pois me achava fraco porque eu tinha medo do touro, que chegava a ter pesadelo em algumas vezes em quanto dormia.
Assim, ficar em casa sozinho hoje, no silêncio da minha casa a chuva veio e com ela os trovões e senti uma enorme saudade dos meus primeiros anos, me emocionei a ponto que resolvi escrever um pouco da minha história. Esta foi uma experiência visceral.
Fui às lágrimas, minha imaginação me fez lembrar um tempo que foi vivido de forma simples, onde as novidades eram as mudanças climáticas, a oportunidade de viver intensamente, administrando os meus dias de observação do céu, dias que muitas vezes entravam pela noite, olhando as estrelas, correndo atrás da lua até cair. Doía, mas eu não chorava, minha irmã fazia isso por mim.
Naquele tempo pensava que o céu era uma enorme tigela que nos protegia como uma grande casa, pois as pessoas diziam que Deus tinha feito para todos viverem em paz e o que mais me intrigava era que Deus todos os dias pintava a grande tigela com as nuvens, com as estrelas de uma maneira que nunca se repetia como isso era possível?
Minha avó me ensinou a ter habilidades de um pequeno engenheiro mais nestes assuntos do céu ela sempre me dizia para observar e agradecer, pois as coisas de Deus eram responsáveis pela nossa existência e por isso, não se discutia se reverenciava.
Que coisa boa o silêncio, fui às lágrimas, fechei os olhos para secá-las e enquanto meus olhos estavam fechados; penso que vi meu pai como ele era naquele tempo, minha irmã com sua bondade extremada à sua existência, apenas pelo fato de que ser bom é uma regra que devia ser seguida por todos.
A prima do meu pai na sua postura impecável sob a luz de lamparina com sua leitura enfática criando em seu entorno uma atmosfera teatral com toda complexidade, que nos transportava para uma viagem além do nosso tempo saciando nossa fome de conhecer os mistérios que não eram poucos na busca constante de um entendimento mínimo do universo que estávamos inseridos.
Chorei um pouco sim. Mas estou certo que fui compensado pelas lembranças e por saber que aquele tempo, àquelas pessoas, aquele lugar começou minha história e que hoje consigo escrever minhas lembranças, de uma forma muito incipiente, mas esperançosa porque aquele pedaço de chão de onde eu vim ao mundo entre outras coisas moldaram em mim, habilidades de sentir que a vida é assim, o resto são escolhas que tenho que fazer para merecer ser feliz.
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